quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Duas obras artísticas tiveram início no Núcleo de Formação ASQ viram projetos e obras artísticas e estreiam em Brasília: O videodança de Tauana Parreiras: "Asa leve que rasga ao vento" e o solo de Ramon Lima: "Sonâmbulo". Saiba mais :

Nos anos anteriores à pandemia o Núcleo de Formação ASQ tem desenvolvido processos criativos de solos, onde cada bailarino em conjunto com os outros desenvolvem seus solos individualmente num processo colaborativo coletivo de feedbacks, discussões e compartilhamento do material  coreográfico. Alguns solos como o de Ramon Lima e Tauana Parreiras se concretizaram em obras que  estrearam respectivamente em 2023 e 2021. Saiba mais sobre cada obra:



ASA LEVE QUE RASGA AO VENTO de TAUANA  PARREIRAS:

Com fomento do Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC), dançarina TAUANA  PARREIRAS convida o espectador a mergulhar em sua intimidade na videodança:" ASA LEVE QUE RASGA AO VENTO"


    




Montagem que investiga conflitos pessoais provocados pelos constantes estímulos superficiais e chama o olhar para questões de cunho interno.

Asa leve que rasga ao vento é um videodança que investiga as tensões do existir a partir de questões existenciais sobre alteridade e o sentimento de pertencimento. A criadora e performer Tauana Parreiras realiza um mergulho no seu próprio inconsciente acessando um universo de sensações e sentimentos que faz de seus conflitos corpo numa tentativa de processar os mais profundos questionamentos sobre vida e morte.

No processo criativo, a autobiografia foi o ponto de partida para a pesquisa de movimento baseada em improvisações. Os achados da investigação ultrapassam a dimensão pessoal ao provocar reflexões sobre a condição humana e o estado de crise que vivemos. Há uma constatação de que as crises pessoais e coletivas flagram uma crise maior, de representação. As diversas maneiras como traduzimos o mundo em imagens, gestos, conceitos e ideias têm carecido de sentido por não conseguirem nos fazer compreender melhor esse espaço, nem vislumbrar formas de mudá-lo ou mesmo sustentá-lo, causando um grande mal-estar. Encarar esses conflitos sem solução parece, de forma paradoxal, criar um alento. Entre a dor e o prazer de aceitar a própria condição e ser quem se é, há uma espécie de plenitude e equilíbrio. A sucessão de imagens, paisagens internas e externas criadas para o vídeo visitam as sensações e reverberações do inconsciente disparadas ao processar os desdobramentos dessas reflexões.

Com a colaboração da coreógrafa Luciana Lara que no trabalho exerce a função de dramaturgista, as imagens de Thaís Mallon e a edição de Isabelle Araújo, a performer e dançarina Tauana Parreiras concebe uma dramaturgia e uma obra coreográfica que desconstrói sentidos narrativos e virtuosos para alcançar uma perspectiva íntima e íntegra de uma experiencia interna. Quem assiste o videodança é testemunha de uma viagem emocional e convidado a engajar em uma perspectiva sensória com o simples e com o ritmo da sucessão de imagens e pequenos movimentos


O vídeodança ASA LEVE QUE RASGA AO VENTO  está disponível em plataforma de vídeo desde  sua estreia no dia 18 de dezembro de 2021.



Sobre Tensões do existir: diálogos e dança, projeto que deu origem à montagem

A provocação que levou a intérprete-criadora Tauana Parreiras a conceber o projeto nasceu do desejo em questionar a fuga para o que é superficialmente belo e agradável. Na contemporaneidade, em meio a tantas crises pessoais e coletivas, “precisamos compreender como encontrar nosso centro, como lidar com as diversas tensões internas e encarar nossos conflitos”, reflete Tauana.

Na visão da artista, “vivemos uma massificação cultural cada vez maior, na qual setores da sociedade e do Estado tentam suprimir o estranho, o diferente e o outro”, detalha Tauana. Com isso posto, “procuro desenvolver um trabalho que instigue o público a voltar o olhar para questões do universo interno, que envolvem aspectos ligados à identidade e pertencimento, mas podem ir para além destes. Essas investigações internas são um passo importante se quisermos chegar em algum senso de equilíbrio, especialmente em meio ao caos.” explica.

Assim sendo, Tensões do existir: diálogos e dança promoveu duas oficinas de dança contemporânea. Nestes espaços, participantes foram convidados a experimentar no próprio corpo como é transformar esse tema em movimento. Foram realizadas, ainda, quatro lives com profissionais da psicologia, filosofia, artes visuais e dança e outras três lives de compartilhamento do processo criativo, nas quais o público pôde participar por meio do chat. Os bate-papos estão disponíveis em https://www.instagram.com/dialogosedanca/  

O projeto inicial era de um solo de dança a ser apresentado em teatros e algumas atividades de roda de conversa e oficina. Porém, foi modificado para que continuasse viável durante a pandemia. A ausência de ingressos solidários, caso do solo fosse presencial, motivou a produção a criar a campanha de arrecadação de recursos.


Release da obra:

A obra investiga as tensões do existir a partir de questões existenciais sobre alteridade e o sentimento de pertencimento. Com a colaboração da coreógrafa Luciana Lara, que no trabalho exerce a função de dramaturgista, as imagens de Thaís Mallon e a edição de Isabelle Araújo, a performer e dançarina Tauana Parreiras concebe uma dramaturgia e uma obra coreográfica que desconstrói sentidos narrativos e virtuosos para alcançar uma perspectiva íntima e íntegra de uma experiência interna. Quem assiste o videodança é testemunha de uma viagem emocional e convidado a engajar em uma perspectiva sensória com o simples e com o ritmo da sucessão de imagens e pequenos movimentos.









 





SONÂMBULO DE RAMON LIMA:



 Foto: Nytiama Macrini 



Obra coreográfica Sonâmbulo circula no DF em 3 teatros: CCBB Brasília, SESC Paulo Gracindo e Espaço Cultural Renato Russo

Com ampla pesquisa ancorada na experiência do corpo, oriunda de 6 residências artísticas em 4 países, o espetáculo estreia no Brasil, entre setembro e outubro, com oportunidades gratuitas de acesso.

“A criação tem uma abordagem coreográfica que se apropria da passividade e da inércia normalmente vinculadas ao sono, como uma forma sorrateira de resistir às lógicas impostas pelo cotidiano, a exemplo do produtivismo exacerbado e do protagonismo”, explica Ramon Lima, coreógrafo e performer da obra.

Com classificação de 12 anos, a obra circula em 3 dos principais espaços teatrais do Distrito Federal — Plano Piloto e Gama —, em sua estreia no Brasil, entre os meses de setembro e outubro, com entradas pagas e gratuitas.

Além das apresentações, o projeto oferece uma roda de conversa sobre internacionalização de projetos em dança e uma oficina organizada como laboratório artístico para criações-solo.


Dois mundos

O sono como zona de resistência figura no cerne da obra. Adormecer, em Sonâmbulo, é uma maneira de criar fissuras naquilo que é estável, promover o direito ao corpo.

O corpo que experimenta o sonambulismo existe entre dois estados, ou dois mundos, o do sono e o da vigília. “Regido pelas lógicas de ambos, o corpo sonâmbulo que nos inquieta, é ambíguo e não se submete a apenas uma norma de existência estabelecida. A condição de trânsito e equilíbrio precário faz emergir um lugar de reflexão sobre o que decidimos que é o normal, o possível e o desejável para um corpo”, complementa Ramon sobre a origem da obra.

Nesse lugar, talvez revele-se uma maneira diferente de lidar com as pressões da vida moderna, como o foco exagerado na produtividade e na busca por destaque pessoal. Dormir surge tanto como um ato de resistência a essas pressões quanto um espaço de liberdade e renovação.

Assim, a forma como Sonâmbulo ocupa o palco cria uma ligação direta com o lugar em que a peça é mostrada. Combina características físicas e metafóricas do espaço, encurtando a distância entre a obra e o contexto, permitindo que o público mergulhe profundamente em uma experiência artística, sensorial e política.

Confira a programação completa

CCBB Brasília — Centro Cultural Banco do Brasil
Apresentação em 08/09, às 20h, como parte da programação do Movimento Internacional de Dança (MID).

Teatro SESC Paulo Gracindo
Apresentações em 14, 15 e 16/09, às 20h (sessão extra, 15/09, às 16h).

Espaço Cultural Renato Russo — 508 Sul
Apresentações em 29 e 30/09, às 20h; 01/10, às 19h (sessão extra, às 16h).
Teatro: Galpão Hugo Rodas;


Roda de conversa em 30/09, de 16h às 18h — Internacionalização de projetos em dança: da criação à difusão.
Teatro: Galpão Hugo Rodas;


Oficina em 26/09, das 13h às 15h30; 27/09, das 10h às 18h; e 28/09, das 13h às 15h30h — Travessia, desvio, abandono: laboratório artístico de criações-solo.
Teatro: Galpão Hugo Rodas;
Ingressos: gratuitos, mediante candidatura online e processo de seleção.
Classificação: 16 anos.



Ramon Lima

É bailarino e coreógrafo, cuja pesquisa propõe uma imersão sensível, abordando questões políticas, estéticas e éticas relacionadas à noção de direito ao corpo numa perspectiva ocidental e contemporânea.

No Instituto de Artes de Brasília, estudou Artes Cênicas, entre 2012 e 2016. Em 2019, integrou o Master Création Artistique na Universidade de Grenoble Alpes. Em 2021, criou seu primeiro solo, Protopolis, uma instalação coreográfica que questiona as noções de pertencimento. Em 2023, criou outra instalação MIRAGE, no âmbito do laboratório T.R.I.P, realizado no Le Pacifique – CDCN Grenoble — como parte de um dispositivo para o impulsionamento de jovens artistas emergentes.

Também colaborou com projetos de dança junto à coreógrafa Julie Desprairies, incluindo Actions tropicalistes (2020); Tes jambes nues (2020 e 2021); Les amies de Fontbarlettes (2024). Além disso, contribuiu com a coreógrafa Anne Collod na criação de CommeUne Utopie (2021, 2022 e 2023) e fez parte do projeto La danse des grues (2022), dirigido por Kitsou Dubois.

Em Portugal, Ramon Lima trabalhou como intérprete na última criação de André Braga e Cláudia Figueiredo, Cratera (2023).

Concepção e equipe

O processo criativo teve início em 2022, de modo itinerante em 6 residências artísticas acolhidas em 6 centros culturais de 4 países diferentes: Centro de Dança do Distrito Federal (Brasil), Espaço Cultural Renato Russo (Brasil), RADAR Mechelen (Bélgica), Theater arsenaal (Bélgica), CRL – Central Elétrica (Portugal) e Le Pacifique – Centre de développement chorégraphique national de Grenoble (França).

O espetáculo foi apresentado, em processo, na programação de 3 festivais internacionais: Festival OUTSIDE IN, em Mechelen (Bélgica); Festival 22 VOLTS, no Porto (Portugal); e Rencontres chorégraphiques internationales de Seine-Saint-Denis, em Montreuil (França).

Financiada pelo programa Conexão Cultura do Distrito Federal e pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal (Secec-DF), a etapa de concepção do espetáculo contou com a contribuição da coreógrafa Luciana Lara, como dramaturgista do projeto. Para a construção do pensamento sobre o espaço cênico, a assessoria foi do Coletivo EntreVazios. Os figurinos, são assinados por Marcus Barozzi. Já a trilha sonora foi composta pelo músico português, João Sarnadas e foi desenvolvida durante uma residência artística acolhida pela CRL – Central Elétrica, no Porto.




Release da obra:

Em Sonâmbulo, esta condição física que associamos livremente com o universo do sonambulismo, ou seja, um estado oscilante entre o sono e a vigília, nos permite habitar um corpo dúbio que não se sujeita às regras de apenas um dos dois pólos, e portanto abre um espaço de contraposição à algumas lógicas impostas que nos distanciam do direito ao nosso corpo. Aqui, isto se materializa em uma relação singular que se estabelece entre um corpo, um figurino, um espaço, uma plateia e um tempo compartilhado.










  




Se você quer se aprofundar e entender um pouco mais como foi o processo criativo leia as entrevistas que Ramon Lima e Luciana Lara deram para a jornalista Clara Molina e publicamos aqui na íntegra:



Entrevista com o coreógrafo e bailarino | Ramon Lima:


- O que esse projeto significa para você?



Este projeto para mim é um lugar onde eu consigo atravessar algumas inquietações por via de uma experiência genuína que se dá no meu corpo. Em Sonâmbulo, o que me coloca em movimento é um estado ou qualidade corpórea muito específica, que se relaciona diretamente com os motes temáticos da pesquisa: o sono como uma zona de resistência. Um pensamento que surge em diálogo com a teoria de Jonathan Crary – sobretudo seu livro “24/7: Capitalismo tardio ou os fins do sono” – mas que toma uma configuração diferente quando se instaura neste projeto. Em Sonâmbulo, esta condição física que associamos livremente com o universo do sonambulismo, ou seja, um estado oscilante entre o sono e a vigília, nos permite habitar um corpo dúbio que não se sujeita às regras de apenas um dos dois pólos, e portanto abre um espaço de contraposição à algumas lógicas impostas que nos distanciam de nossos próprios corpos, à exemplo do produtivismo incessante como norma e da necessidade desmedida de protagonismo como lugar de sucesso pessoal. Aqui, isso se dá por uma relação singular que se estabelece entre meu corpo, o figurino, o espaço, a plateia e o tempo. Um instante compartilhado, onde buscamos mergulhar em uma proposta estética que nos aproxime de uma experiência sensível não somente para quem faz, mas também para quem testemunha, algo que para nós se aproxima de um desvio ou suspensão no cotidiano. Uma maneira silenciosa de nos atentar ao nosso direito ao corpo.



- Como foi o processo de intérprete criador?

A proposta é criar a partir da experiência do corpo. Este é o centro da minha pesquisa coreográfica – tanto por uma perspectiva estética, quanto conceitual. Esta também é a maneira como eu habito a dança hoje. Portanto, o processo de gestar Sonâmbulo não poderia ter sido diferente.

Toda a escrita coreográfica da obra é gerada por um processo de experimentação guiado por sensações físicas genuínas, que posteriormente vão de encontro ao universo temático da obra, ou seja, o sono. Este processo me conduzia a uma investigação coreográfica onde não tinha necessariamente um objetivo de produzir nada específico, mas sim, vivenciar uma jornada física por estados e corporeidades que me afetavam ou marcavam de alguma forma. Derivar de maneira mais livre pelas sensações que as experimentação me levavam era uma maneira de atravessar lugares diferentes do meu corpo, do meu sensório, do meu imaginário. Consequentemente este processo gerava corporeidades e materiais físicos que me interessava e que eu os revisitava em novas experimentações, até que em algum momento ele já fazia parte do universo que estávamos criando. Algumas das vezes estes materiais se fundem ou se agrupam com outros que não necessariamente surgiram juntos, criando um vocabulário ou um inventário corpóreo que era colocado em diferentes situações ou configurações.

Todo este processo era igualmente irrigado por referências, questões e reflexões de ordem teórica que de alguma forma me permitiam olhar para este material por diferentes ângulos, o que poderia aproximá-los do universo que nos estava inquietando, ou repeli-los de forma mais categórica. A maneira como estes materiais se organizavam também mudavam as possíveis leituras que fazíamos deles, algo que os mantinham em questão durante todo o processo criativo, evitando um processo de categorização ou de estabilização precoce do que era criado.


- Quais são os desafios deste solo?

Neste projeto, sou o coreógrafo e o bailarino, duas funções essencialmente em diálogo. O bate e volta quase inerente na relação destes dois papéis, aqui se restringiria a mim mesmo, um risco de por vezes criar ciclos fechados. Ocupar estes dois lugares neste projeto é portanto, um desafio, visto a necessidade de aproximar a experiência do que era vivido enquanto intérprete, com o que era percebido pelo público. Então, outra função se apresenta de maneira essencial neste contexto: a dramaturgista.

Para construir pontes, fui acompanhado pela coreógrafa Luciana Lara, que assume o papel de dramaturgista de Sonâmbulo. O diálogo que se estabelece me permite olhar para/de fora, ser provocado, invertido, relembrado do essencial, mas também assumir posições divergentes com mais segurança. Um espaço para criar de maneira mais livre, mais ancorada e conseguir extrair dali discursos mais próximos dos que eu gostaria de trazer para o espetáculo.





Entrevista com a dramaturgista / Luciana Lara :


- Descreva um pouco da sua metodologia como dramaturgista desse projeto;

O papel de um dramaturgista num espetáculo de dança é bem diferente do de dramaturgo numa peça de teatro. Dramaturgo é diferente de dramaturgista. A palavra dramaturgia geralmente está associada, tradicionalmente, com o texto teatral que dá origem a encenação de uma peça. Como na dança, geralmente não há texto, entre outras razões, como o próprio desenvolvimento das artes performativas, essa diferenciação no termo reflete um outro entendimento e aponta para uma abordagem mais complexa sobre a função do dramaturgista num trabalho. É importante entender que Ramon Lima é bailarino, coreógrafo e diretor do espetáculo Sonâmbulo, então os caminhos que o trabalho vai tomando, as escolhas do que fica em cena do processo de criação e as decisões finais são deles. Ao contrário do peso da palavra dramaturgista que parece deter o saber, as intenções do trabalho e, também, do papel de acompanhar o processo criativo que exerço como um olho de fora, não tenho a função de determinar o que fica no trabalho. Meu papel é mais como a de uma provocadora/ mediadora de reflexões sobre todos os elementos do trabalho, como o movimento, o figurino, a luz, o som, o cenário e até mesmo ajudo a pensar o título, o release e o design das artes gráficas que vão divulgar o trabalho. Minha principal função é problematizar como cada elemento interfere e cria relações uns com os outros na fruição da obra.


Na prática, pra isso, trago referências estéticas e temáticas para dialogar com as que o criador trouxe para o trabalho, instauro as discussões entre o que é desejado estar na obra e o que realmente torna-se visível na constituição da obra. Organizo um memorial do processo, ajudo a reter e lembrar de materiais coreográficos que surgem nos improvisos e principalmente gosto de pensar que me torno uma espécie de alterego com o qual o criador Ramon pode discutir todos os aspectos do trabalho. Como também sou uma criadora de dança contemporânea, coreógrafa e diretora que tem uma trajetória de 34 anos de trabalho na Anti Status Quo Companhia de dança, procurei ficar atenta a busca que Ramon tem por uma linguagem própria, ajudando a torná-lo consciente de suas associações e referencias estéticas inspiradoras, suas contradições, seu imaginário, suas especificidades e potencialidades corporais e interesses como criador. Em sonâmbulo, acredito, também, ter ajudado a tecer as relações entre as sensações internas da execução dos movimentos e as imagens externas que o corpo produz, a evidenciar as possíveis leituras, sensações e relações com a temática do sono e a construir uma abordagem do tema que aproximasse a ideia de se entregar ao sono como uma forma de resistência ao capitalismo.



- Por que você acredita nesse solo?

Eu acredito muito em trabalhos que tem uma pesquisa prática profunda, que tem a chance de ter um processo de criação que permita tempo para maturação das escolhas e do trabalho corporal por meio de muita experimentação, análise, a inúmeras idas e voltas, de fazer e refazer, olhar e re-olhar pro que foi feito, porque isso proporciona a construção de camadas de sentidos que dá preenchimento/ estofo ao trabalho. O processo criativo é intrínseco a criação de uma obra, você sente quando vê o trabalho quando ele tem uma pesquisa com qualidade. Muitas vezes o artista não tem tempo, espaço e estrutura para fazer esse trabalho, mas no caso de Sonâmbulo temos tido o privilégio da oportunidade de desenvolver o trabalho com uma estrutura rara de tempo, espaços e contextos.


O trabalho surge em 2018 dentro das atividades do Núcleo de formação ASQ, que é um laboratório de pesquisa, estudo e criação de dança contemporânea, da Anti Status Quo, num momento em que estudávamos dramaturgias que surgem do corpo, das sensações internas que sentimos ao mover e do que nos interessa no campo sensório de se colocar em movimento. A estrutura e o contexto desse projeto do Núcleo têm o diferencial de dar ênfase ao processo e não a um resultado, na contramão do que geralmente acontece com a selvageria exigida ao indivíduo da sociedade atual, do qual o artista não está imune, de ter que produzir, da lógica cheia de expectativas de pensar no produto no início do processo e no que o outro vai pensar daquilo que ele fez. Vejo uma diferença enorme na qualidade do processo quando o foco está no processo de criação pois gera uma calma, uma baixada do ego, porque não tem a pressão de ter que mostrar o trabalho, dando tempo ao tempo e gerando outros parâmetros de envolvimento, percepção e do fazer artístico.


Dessa experiência surgiu um desejo de tornar essa pesquisa um solo, o que gerou uma nova etapa do processo criativo de formatar a pesquisa como um projeto para um fundo de apoio, no caso o do FAC – Fundo de apoio a Cultura do DF. Ramon relata que, na época, estava lendo sobre o sono, sua principal referência é o livro “24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono” de Jonathan Crary, que o levou a associar o sono com o vocabulário de movimentos que ele desenvolvia na pesquisa com o corpo. Veio a pandemia, Ramon mudou de Brasília pra França para estudar dança na cidade de Grenoble, fizemos uma imersão em Brasília já no contexto do projeto e aí Ramon teve a oportunidade de fazer uma série de residências artísticas: no Le Pacifique Grenoble (França), depois no Radar em Mechelen (Bélgica), dentro desta residência apresentando uma etapa do trabalho no Theater Arsenal (Bélgica), e depois duas oportunidades na Central Elétrica em Porto (Portugal). Todas as residências tinham em sua programação encontros de feedback com artistas da dança e aberturas de processo para público interessado com a realização de conversas e intercâmbios. Tivemos um processo longo e muito rico com esses compartilhamentos públicos de etapas da criação do espetáculo e as interações com outros olhares durante ao todo 6 residências artísticas, incluindo as imersões realizadas em Brasília



- O que esse solo traz de reflexão e contribuição para quem o contempla?

Sonâmbulo se tornou uma obra onde o estado corporal de Ramon Lima em cena constrói uma corporeidade que proporciona o envolvimento da plateia com a transformação e a plasticidade das imagens que o corpo vai construindo na relação com ele mesmo, com o espaço, com o figurino, com o tempo e com a temática do sono. Surpreende em momentos que produz uma fissura no real, subvertendo as funções e o uso cotidiano das coisas. O trabalho cria espaço para diferentes relações que perpassam o imaginário surreal e as noções do papel do sono em nossos tempos. Suscitam reflexões sobre os efeitos do sono no nosso corpo-mente, da sua importância, seus efeitos na cognição e em como processamos a realidade. Instaura momentos de deriva que extrapolam as mais comuns abordagens sobre o sono que podem contribuir para revisões sobre como a cultura dominante nos impõe maneiras de encarar o sono na nossa sociedade, nos mostrando mais um sintoma de nossa desconexão com os nossos corpos e ou a necessidade de controle do corpo para finalidades forjadas pelo sistema capitalista do qual vivemos submetidos.